21 dias… parte II

Publicado: 10 de março de 2009 em Sem Categoria

Sexta-feira 13 de fevereiro. São quatro da manha quando acabo de pegar minhas coisas, jogar tudo na mochila e sair do quarto. A chuva caiu o tempo todo e está tudo molhado e alagado. Lá fora, debaixo de uma mangueira enorme, logo em frente à pousada fica a parada dos carros, e já se ouvem os gritos dos cobradores. A um caminhão para Guroe esperando passageiros. O motorista ainda dorme enquanto os cobradores chamam passageiros. Esta frio e molhado. Estou sentado com um casal, esperando. Um jovem de calças curtas e paletó, e ainda com uma boina, tipo para golfe, sobe no carro. Eu não sabia, mas esse rapaz, Eliseu, iria me salvar ainda hoje.
Esperamos no carro por quase uma hora, até que apareceu outro caminhão. Ouve uma pequena discussão em língua local, eu não entendi nada obviamente, mas o rapaz entendeu e como já tínhamos nos cumprimentado me disse, “vamos para o outro carro”. Pulamos no outro carro e este saiu ainda procurando passageiros pela cidade, mas é melhor esperar num carro que anda, do que num carro parado. Alguém carrega sacos de milho no caminhão, vários. Fica mais confortável para sentar, mais tarde alguém colocaria um colchão no qual todos sentamos, estava muito confortável. Supiu no carro uma mocinha miúda, Luzia. Quieta, um rosto amigável, mas calada. Eu não sabia, mas essa menina iria me salvar ainda hoje.
Eu não tinha nenhuma idéia da distancia, nem para onde estava indo. Guroe era apenas um nome e Zampezia apenas mais um estado/província de Moçambique. Mas a paisagem começa a mudar. As montanhas parecem, cada uma, feitas de uma única colossal rocha, uma só pedra que sai da terra, como um dente. Em algumas delas, pode-se ver de longe, manchas brancas escorrendo pelas paredes. São enormes quedas d’águas. O carro balança na estrada molhada, mas não lamacenta, o chão é uma terra arenosa e cascalhenta, que de certa torna a viagem mais suave.
Estou com fome, mas como não quero gastar, pois não sei onde vou chegar e nem quando vou chegar, não compro nada na rua. É então que a mão de Luzia aparece. Chocolate? Lógico que aceito. Biscoitos? Sim, claro! Frutas? Muito obrigado, muito obrigado! Meu café da manhã. Então percebem o meu sotaque. E a conversa vai bem. Luzia, Eliseu e um outro rapaz que não perguntei o nome conversam sem rodeios e com certa profundidade sobre língua portuguesa. É uma das poucas conversas que realmente gostei. Depois descubro, são todos professores. E assim vamos agora falando sobre educação, métodos, aulas, diferenças e similaridades. E então o carro começa a subir e passar no meios de enormes montanhas, que eu chamaria de pedras gigantes.
É manhã. O clima meio nublado, meio amanhecendo produz uma visão que faz de Guroe algo inesquecível. Logo após atingirmos certa altura, mas ainda bem abaixo dos cumes, extensos campos de plantação de chá, folhas de chá. Maravilha de verde, com reflexos dourados nas folhas, naquela luz serena da manhã. Guroe é linda. Cada uma das fazendas de plantação tem uma casa colonial, o que dar um ar pitoresco ao cenário. São casas brancas, telhadas à tradicional moda portuguesa. Os campos se estendem da beira da estrada até aos pés das montanhas. Os trabalhadores estão colhendo, e alguns se levantam entre as folhas para me saudar de longe.
Chegamos à cidade. Ainda estou cercado da herança portuguesa. Há sim uma confusão de gente e carros ao redor da parada de ônibus. Aqui também é uma rota de viagem, a cidade é um pouco ocupada com isso. Luzia vai ficar, ela troca números de telefone com Eliseu, eu não sabia, mas estes dois ainda teriam algo. Nos despedimos e ela se vai. 20 e poucos anos e um filho esperando por ela em casa. Solteira, é claro.
Chegamos a um bom tempo, tentamos uma carona com um amigo de Eliseu, mas este já saiu. Eliseu, a essa altura já sei, vai para Mocuba, lugar por onde terei que passar e então decidimos seguir juntos. O carro que vai para Mocuba vai demorar, deixamos nosso telefone com o motorista e saímos para conhecer a cidade. Eu não sabia, mas Eliseu tinha pago a minha passagem. Andamos um pouco, ele conhece a cidade e as montanhas. Me conta que para escalar algumas delas é preciso procurar autoridades locais, digo, tribais, feiticeiros, realizar certos rituais, deixar oferendas. Algumas das montanhas foram usadas como túmulos de antigos reis. E ele me diz que sim, no topo pode-se vê-los.
Podemos ver alguns brancos nas ruas, conversando em inglês. Uma moça americana pelo sotaque e uma menina indiana pela aparência. Um casal. Eliseu oferece um almoço. Nada demais, pão com ovo e suco parmalat. Refeição de rei para mim. Subimos e descemos a rua. Então fico sabendo que ele é filho de um doutor, e sua mãe é também professora. Ele dá aula na UP (universidade de pedagogia) em Lichinga e estava indo visitar a família, pois um tio havia falecido e o pai não estava nada bem.
O carro que iríamos não vai mais, passamos para um outro carro sem problemas de passagem. É algo parecido com uma pampa. Em péssimo estado. Mas o motorista é engraçado e nos faz rir de cada porcaria do carro. Ainda damos uma volta na cidade a procura de passageiros. Alguém sobe, com uma bicicleta, sacos de chá e esteiras de palha. Eliseu e eu vamos na cabine. Ainda vejo a igreja da cidade, construída à beira de um vale. A vista além é linda.
Esse carro não vai para Mocuba diretamente. Vai para Ile e de lá, dizem, poderemos pegar outro carro para Mocuba. O caminho é uma extensa área plana, marcada por formações rochosas similares, mas não tão altas, às de Guroe.
Quase no fim da tarde chegamos a Ile. Uma pequena cidade também no alto de um monte. Pacata, sossegada. Alguns estabelecimentos com nomes brasileiros. Alguém até comenta que as pessoas daqui falam com o sotaque do Brasil. Tento com um senhor na rua. Não parece nada, ao menos para mim.
Não há carro, ao menos não agora. Então tomamos uma coca, essa eu paguei. Dez meticais, um real. Conversamos até que alguém se aproxima e pergunta se queremos ir para Mocuba. Alguém tem um carro e esta procurando passageiros para pagar o combustível. Vamos até lá. Enquanto caminhamos o celular de Eliseu toca. Aquele seu amigo que estava em Guroe agora está aqui. A esperança de economizar cem meticais me anima. Cem meticais são uma refeição decente ou dormir num hotel de quinta. Mas não vai dar certo, o amigo não vai hoje. Vamos ao carro, e uns caras estão bebendo numa festa particular. É um carro de rico. Camionete cabine dubla, ar condicionado e tals. Esperamos eles saírem. São homens bebendo com algumas meninas em volta. Lógico que isso não foi rápido.
Por fim saímos. Os donos do carro são o dono de uma mina de pedras preciosas, o filho do prefeito de Mocuba e um funcionário publico. Então, era lembrar de quem eram e manter a conversa no nível.
A essa altura, Eliseu já tinha se apercebido que eu não tinha dinheiro para pagar um hotel em Mocuba e me ofereceu sua casa. Muito agradecido aceitei. Imaginei, reflexo da mente branca, que seria uma boa ficar na casa de um professor universitário, filho de um médico e com uma mãe também professora.
No caminho, os donos do carro, alcoolizados, com exceção do motorista, começaram a conversar comigo. Se apercebendo que eu era brasileiro as mesmas conversas de sempre recomeçam. Como faço para ir ao Brasil, no Brasil com um carro como esse sou rico, as mulheres de lá gostam de moçambicanos, etc. Perguntas desse nível, fazendo a conversa beirar o insuportável. Eu começo a falar sobre recolhimento de impostos e o que isso representa no desenvolvimento de um país. A conversa melhora um pouco. O funcionário publico, que aparentemente era o mais rico, me convida para dormir na casa dele, como se fosse um premio da loteria, diz que vai me levar para sair na noite e me apresentar para os amigos. A verdade por trás dessa bondade é que ele quer me usar como algo exótico para impressionar as pessoas e lógico, ele acha que eu tenho dinheiro para gastar com ele na noite.
Quando o carro pára para Eliseu descer, desço com ele, agradeço o convite e troco telefone. Já é noite, não vejo Mocuba. Percebo que é uma cidade grande e que nós descemos longe do centro. O irmão de Eliseu esta nos esperando, e então entramos num caminho no mato, passando por bairro sem energia elétrica e percebo que a idéia que eu tinha da casa não era bem a realidade. Talvez a sexta lição dessa viagem.
Quando chegamos, a família já sabia de minha vinda. A mãe cozinhava o jantar. Um balde com água me esperava para meu banho. As cadeiras foram colocadas de forma a eu me sentar ao lado de Eliseu, o mais velho, de frente para os demais. A mãe me cumprimenta com beijo na face, mas ela não me olha nos olhos. Não levanta a cabeça para mim. A irmã pega a minha mochila e guarda, o irmão me traz a água e um par de chinelos, dele provavelmente. Sou conduzido à casa de banho. Mas não houve nenhum silencio mórbido, tudo isso se passou num ar descontraído de conversas e sorrisos. Não havia cerimônia. Eu percebi isso por que sou de fora, mas para eles era o dia a dia se passando. Se algum moçambicano visse aquela cena nada perceberia demais, era o comum do cotidiano. Quando eu voltei a mesa estava posta. Era uma mesa pequena que servia de apoio apenas para eu e Eliseu. O demais tinham seus pratos na mão. A televisão tinha sido colocada para fora da casa, onde estávamos comendo.
Estávamos no fundo de uma casa azul, de tijolos. Atravessamos todo o bairro sem luz e chegamos à casa com eletricidade. Tinha uns cinco por oito? Não tenho certeza. Demos a volta pela direita, a cozinha era feita de madeira, galhos e tabuas, fora da casa. Um cubículo anexo ao final do lado direito. Rodeando a cozinha chegamos na área de trás da casa. Há uma porta e uma janela. Mais atrás, na direção do quintal, ainda do lado direito fica a casa de banho, e mais atrás passa o rio, largo, q cruza a cidade. A casa é modesta, mas aconchegante.
É nessa área do fundo que se passa o jantar. A mãe coloca as panelas na mesa, são pequenas porções, pois ela e os outros dois filhos, e um outro rapaz que morava na casa, vão se servir nas panelas dentro da cozinha. Nos servimos, e sempre me perguntam se como chima, uma polenta sem sal de milho branco, e sempre digo sim. Carne de cabrito acompanha. E eu posso sentir a energia voltando pro meu corpo. Alívio. A um quase imperceptível sinal da mãe a menina levanta e trás água para todos. Na mesa colocam uma fanta e uma coca. Eu sei que Eliseu prefere a coca, mas ele também sabe que prefiro e assim me faz aceitar a coca de qualquer maneira. Hospitalidade.
A novela brasileira ia passando. Falando de alzeimer. Meio fora de contexto eu peço para dormir. Estou muito cansado. Eliseu e o irmão me conduzem há um quarto, aparentemente o do irmão. É a primeira porta a direita, de modo que a janela que dava para os fundos da casa é a janela do quarto. Há uma cama. Ajeito minhas coisas e eles saem do quarto. Como não estou certo se a cama é para mim, coloco meu saco de dormir no chão, amarro meu mosquiteiro e pego uma almofada da cama e deito. Sem saber estava sendo extremamente rude. A cama tinha sido preparada para duas pessoas. Em Moçambique é absolutamente normal dois amigos andarem de mãos dadas, ficar abraçados e, obviamente, dormir na mesma cama. A cama do irmão de Eliseu tinha sido honrosamente sido ofertada a ele, e ele, honrosamente me oferecia dormir na mesma cama. Diferenças culturais. Fiquei no meu saco de dormir mesmo. Combinamos o horário, três e meia da manhã, ele e o irmão vão me levar na parada de ônibus para seguir viagem. Acerto o relógio, digo boa noite e adormeço. Gratidão.

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